Não basta ter técnica de escrita criativa. Não basta ter pós-doutorado. Não basta ganhar um prêmio. Não para uma mulher. Não para mim.
Antes de estrear esta coluna com este texto, eu escrevi dezenas e desisti de publicar todos eles e, confesso, quase desisti da própria coluna. Mas isso não acontece apenas comigo. É um movimento que atinge muitas mulheres. Elizabeth Gilbert, em A grande magia, fala que a busca pela perfeição faz com que mulheres deixem, por exemplo, de submeter seus textos de ficção a editoras e concursos literários por acharem que seus textos não estão perfeitos e por nunca se sentirem boas o suficiente. Mas o que ela também questiona no livro é de onde vem essa pressão por perfeição.
Nós sabemos muito bem de onde, mas vale lembrar. A sociedade que massacrou, perseguiu, ameaçou e cancelou Luísa Sonsa durante um ano quando, na verdade, a artista nunca chegou a trair Whindersson Nunes, foi a mesma que logo esqueceu as dezesseis traições de Arthur Aguiar, torceu por ele e o aclamou no Big Brother Brasil. Uma sociedade assim não nos perdoa, não perdoa mulheres, nem quando não erramos, por isso estamos sempre com pânico de errar.
Por essa razão, reforço aqui o que disse a escritora Conceição Evaristo em uma entrevista, que nada do que conquistou enquanto autora negra foi dado de mão beijada, ela teve de forçar passagem. Recentemente, eu dei uma entrevista e me perguntaram como me senti, como autora nordestina, ao vencer o 6º Prêmio Kindle de Literatura.
Por um instante, eu me lembrei de Conceição Evaristo, me lembrei de quando eu roubava tempo para escrever dentro do ônibus ou, ainda, de quando queria me dedicar mais à escrita, mas precisava sustentar minha filha pequena. Nunca foi fácil, quase nunca é. Eu disse para o jornalista que minhas mãos estavam cheias de terra, que eu cavei o próprio buraco para me caber dentro. Cavei os espaços que hoje eu ocupo, pois eles não existiam, não me foram dados, sobretudo, estando fora do eixo Sul-Sudeste, e que seguro o prêmio com minhas mãos cheias de terra, ainda que com insegurança. A insegurança não vai embora nunca na vida de uma mulher. É preciso aprender a seguir, mesmo com ela. Se tem uma coisa que eu aprendi na minha jornada literária, é que não basta só ter técnica, é preciso não desistir.
Esta semana, fiz a leitura crítica de um texto muito bom de uma aluna de escrita. Ela escreve escondida do marido, que nem sonha que a esposa escreveu um livro, um romance. Ela diz que sonha em deixar esse legado para os filhos, mas que tem medo. Ela tem técnica. Mais uma vez, me volta o título desse texto. Não basta ter técnica de escrita criativa. O que é preciso então, eu me pergunto?
É preciso esse enfrentamento para permitir que nossas imperfeições também possam existir. É preciso aprender a dar espaço a elas. Eu me recordo que, há dez anos, um escritor que eu admirava me criticou negativamente, me disse que minha escrita era muito direta e pouco poética, que não tinha muito valor. É claro que aquilo me abalou naquele momento, mas eu não deixei de escrever, nem de desenvolver o meu estilo, que veio culminar na escrita do romance A filha primitiva.
O curioso é que meu jeito direto e cru de escrever, criticado anos atrás, foi justamente elogiado pelo mesmo motivo. Trago aqui um trecho da resenha da Rebeca Gadelha sobre o livro: “Nisto, a autora nos surpreende com uma narrativa inquietante, crua e sincera que disseca feridas sociais ainda presentes em nossa sociedade”, ou ainda, um trecho da resenha do escritor Oziel Herbert para o Jornal O POVO: “A Filha Primitiva é uma obra complexa. Angustiante de ler em alguns momentos, pesada e profundamente real”.
É preciso continuar “apesar de”. Nós, mulheres, escritoras, temos publicado e mostrado mais os nosso trabalho, porque escrever, sempre escrevemos, mas ainda temos pela frente anos de reparação histórica. É preciso continuar. É preciso vencer o medo de não ser boa o suficiente ou seguir mesmo com ele. É preciso seguir apesar das imperfeições e fazer delas uma marca nossa. Repito: não basta só ter técnica, é preciso não desistir.